sábado, 10 de julho de 2021

REFLEXÔES  para matar o tempo 

Será que a democracia se aguenta?

A situação que  vemos a emergir no mundo ocidental está ainda no início e vai agravar-se. O grande problema mundial será o da qualidade do trabalho ou a falta dele e, dependente deste, acredite-se ou não, está o da democracia.

A democracia ocidental, a que  marxismo chama de burguesa, foi-se constituindo nos países ocidentais (que o são por termos como  centro a Europa) partindo de uma evolução  de mentalidades dos homens europeus, para a qual contribuíram  movimentos culturais e civilizacionais originados sobretudo na Europa meridional -desde  o Renascimento que rompeu com a idade Média e levou Portugal a viajar pelo mundo e a revelar povos e nações que se desconheciam; depois com o Iluminismo do Século das Luzes, mais tarde com a Revolução Francesa e a criação do Estado Moderno: por fim as ideologias democráticas  que se opunham quer ao comunismo quer ao liberalismo, como a social democracia e a democracia cristã e que, convenhamos,  tiveram muito a ver com a Encíclica Rerum Novarum do Papa Leão XIII.

Significou também uma laicização progressiva das sociedades.

Penso que as democracias do "Estado Social" foram aquelas formas de vida colectiva mais avançadas e que até hoje melhor serviram os propósitos das sociedades evoluídas, pese muito embora a negação disto que é feita quer pelos liberais mercantilistas quer   pelos marxistas mais ortodoxos : o controle público da vida económica sem desvirtuar a liberdade criativa e as liberdades individuais fundadoras da democracia; a garantia de protecção social para todos; a escola pública; a saúde pública ao alcance de todas as classes por igual;  a justiça ( se bem que  imperfeita) aberta como suporte das liberdades democráticas.

Tudo isto foi conseguido à custa de uma economia que, para lá de pequenas oscilações, se ia mantendo progressiva, com possibilidades de emprego para as várias capacidades das pessoas, e com a base indispensável do sector primário. Havia trabalho para quase toda a população dos diversos países.

Ora os avanços tecnológicos e o crescente predomínio do sector financeiro foram alterando o quadro do trabalho. libertando mão de obra do sector  primário, menos qualificada e que nem sempre conseguia adaptar-se às exigências técnicas do sector industrial; veio depois um período de transição com o crescimento do sector dos serviços nas suas diversas facetas, e que absorveu, até dada altura, alguma da mão de obra liberta por outros sectores da actividade económica.

Mas chegados a este tempo do século XXI, as derrapagens começaram a sentir- se até em todos os países europeus, com grande incidência naqueles, como Portugal, de economia mais frágil e onde não se soube, a tempo, travar o caminho errado do desenvolvimento económico pressionado pela abertura desregulada dos mercados, que favoreceu logicamente as economias mais poderosas. Quem na altura própria  falou contra o Uruguai Round ( eu modestamente fui um desses) nem sequer foi ouvido ou então apelidado de comunista.

Hoje parece evidente que não voltará a haver trabalho digno para todos os milhares de desempregados - aqui como na restante Europa e, o que é mais preocupante, no resto do Mundo.

Ora não pode haver democracia em sociedades onde cada vez maiores percentagens da população não tem de que viver - não haja ilusões. Pode acontecer uma pequena melhoria de alguns sectores da actividade económica, poderá  haver alguma estabilidade no sector terciário, mais nuns países que noutros, mas isso não resolverá o fundo da questão básica : não haverá estabilidade de trabalho qualificado que chegue à população trabalhadora.

Os acontecimentos em curso no Norte de África e em todos o mundo islâmico não são essencialmente de cariz religioso, embora se possa verificar o aproveitamento nesse sentido - são alguns milhares de pessoas  que tiveram acesso a uma formação académica mais elevada e muitíssimos outros mais sem qualquer formação profissional, que não tem trabalho.

A maioria dos países muçulmanos situa-se em regiões de forte aridez e onde, para além do petróleo e do gás, não abundam outros recursos; tradicionalmente uma agricultura de subsistência, a pastorícia e o comércio sustentaram as populações ao longo dos séculos, sempre num nível de vida precário. Não existe uma tradição cultural democrática como no Ocidente, porque nem a religião  evoluiu  como as religiões cristãs, nem as economias possibilitaram uma emancipação das pessoas como indivíduos - tirando os magnates que sempre viveram a vida segregada nos palácios e haréns.

As religiões são datadas, têm um  tempo em que surgiram, adaptadas a esse tempo e às condições sociais e culturais dos povos em que se implantaram. As igrejas cristãs, em especial e primeiro a Igreja Católica,  acompanharam, embora a custo como sabemos, a evolução da mentalidade social, século após século - mas o Islão ficou preso às suas origens e até se foi fechando sobre si mesmo, cada vez mais. Houve um vislumbre de abertura nos tempos do Al Andaluz, Córdova e Silves, que se desvaneceu. Mas não é aqui a altura para reflectir sobre isso.

Portanto não devemos ter grandes esperanças na chegada da "democracia  ocidental" a estes países que não têm possibilidade de alimentar e dar condições de dignidade individual aos seus milhões de habitantes, e por outro lado o egoísmo e falta de solidariedade de certos Estados ricos como as monarquias do Golfo que, por exemplo, não mexem um dedo para ajudar a Palestina.  

Explorados, durante séculos de crescimento económico europeu, pelos países que os ocuparam até estes serem forçados a conceder-lhes a independência, agora, e perante a lei corâmica, só através de regimes autoritários assentes na paideia islâmica que interliga de forma inequívoca a vida civil e a vida religiosa, mesmo quando são ditaduras laicas, é possível manter alguma "estabilidade instável". Quando é que os mais de 80 milhões de egípcios  encontram trabalho digno?  E os milhões de argelinos ( mesmo assim com mais recursos)? E os milhões de iemenitas? Etc, etc...

Com acesso à mundialização dos conhecimentos, dos avanços tecnológicos e do consumismo que os países ocidentais ostentam e com o impulso gigantesco que lhe é dado pela política chinesa, milhões de seres humanos,  muçulmanos mas também  cada vez mais asiáticos e africanos vão querer muito mais do que aquilo  que hoje tem. Por outro lado os recursos do planeta estão achegar a limites inultrapassáveis   Então  como governar essa crescente insatisfação sem qualquer perspectiva de que as respectivas economias cresçam significativamente? E a fome e a revolta, como se enfrentam?  O consumismo é a causa das desgraças do mundo actual - por isso os regimes autoritários serão a via mais evidente, talvez mesmo a única via. 

A instabilidade social permanente e a violência nos países muçulmanos e do chamado terceiro mundo não é compatível com uma democracia tal como a temos conhecido.  Mas cá também...

Na verdade em muitos países europeus a falta de trabalho vai continuar enquanto não houver uma mudança radical do tipo de economia que se pratica em todo o mundo, enquanto não se retomar, em cada país e em cada cidadão, a consciência de cultivar cada palmo de terra e de saber viver dela  com perenidade ( e hoje as tecnologias permitem e facilitam esse trabalho); enquanto não se voltar ao mar e se libertar este da poluição que o asfixia; voltar á pesca e à aquacultura ecológica - e existem milhões e milhões de pessoas em regiões que não têm acesso ao mar e querem comer peixe, a qualquer preço; enquanto não se voltarem a reorganizar as sociedades humanas não se conseguem empregos para a grande maioria e, sem emprego, não se consegue paz  social.

Só ainda não há um regime autoritário em muitos países como o nosso porque a UE tem travado essa eventualidade. Mas até quando ?

....

Transcrevi estas reflexões  dum texto que escrevi em Fevereiro de 2011, e constato que poderiam ter sido escritas hoje, tal a actualidade daquilo que eu penso sobre a vida e o mundo nos nossos tempos. Mas agora temos um novo e grave acontecimento, dos maiores que a Humanidade já viveu nos tempos modernos : a pandemia.

A pandemia veio revelar  com maior nitidez o emaranhado de interdependências que foram criadas nas últimas décadas, e como as políticas neoliberais praticadas em todo o mundo e o capitalismo selvagem praticado pela China, tem contribuído para levar o planeta aos limites da rotura - não é fantasia, não é pessimismo. O paracetamol,  que todos consumimos no mundo inteiro, é apenas fabricado na Índia !

O famoso Stephen Hawking escreveu "somos todos navegantes do Tempo "  e o tempo acelera-se para todos nós.

Já há uns dois ou tres anos o Prof. Joseph Stiglitz, Prémio Nobel da Economia em 2001, sobre o que passava no ocidente e no mundo em geral,  escreveu: "O neoliberalismo prejudica a democracia há 40 anos. Os efeitos da liberalização do mercado foram particularmente odiosos...". E ainda ; "Após 40 anos os números estão aí : o crescimento diminuiu e os frutos desse crescimento foram na sua esmagadora maioria para um punhado que está no topo. À medida que os salários estagnavam e o mercado de acções subia, o rendimento e a riqueza espalharam-se para os mais ricos, em vez de se espalharem para os mais pobres",

E em Março de 2020, em plena pandemia, Nuno Monteiro, Professor em Yale, deixou este alerta: " A curto prazo a actual crise poderá evoluir para situações de calamidade humanitária quando a pandemia  atingir países mais pobres e, particularmente, populações de refugiados, designadamente as que decorrem das guerras na Síria e no Afeganistão".

Hoje fala-se no século XXI como o século das pandemias, as condições do planeta, a Natureza sobrecarregada e com os seus esquemas inatos de sacudir o que está a mais, as megalópolis chinesas, indianas, africanas, mexicanas, latino americanas, são tudo factos  que se congregam contra a Humanidade . E voltando como comecei em 2011, as democracias começam a ruir até na Europa, vejam-se a Hungria, a Polónia, o que já diz o Presidente da Eslovénia, repare-se no czarismo espúrio da Rússia - os países do leste europeu, que nunca conheceram duradouramente a  modernidade da Revolução Francesa, e viveram décadas sob a escravatura das "democracias populares"  comunistas ( eu visitei algumas...) serão os primeiros a cair. Depois veremos os outros...

Stiglitz fala também  isto : " O único caminho  a seguir, o único caminho para salvar o nosso planeta e a nossa civilização é um renascimento da História. Temos de revisitar o século das luzes..."

Fica a esperança












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