Um pouco da minha história pessoal
Hoje vou escrever umas notas sobre a minha velha amizade com o Gonçalo Ribeiro Telles - para memória futura, pois por enquanto ainda me lembro mas não sei se isso acontecerá por muito tempo... E está na altura de recordar ...para viver integralmente!
Tinha entrado para o Curso de Arquitectura Paisagista, creio, salvo erro, em 1962, e tinha como professores além do Mestre Francisco Caldeira Cabral, os arq. paisª. Edgar Fontes e Ribeiro Telles ; entendia-me muito bem com todos mas cedo me atraiu a maneira de ser do GRT. Qual não é o meu espanto, quando quase no fim do ano lectivo o Ribeiro Telles foi expulso do ensino, eu que julgava até pela minha família, que eram perseguidos pelo salazarismo os comunistas e os republicanos - agora um católico e monárquico !
Quando se despediu na última aula que deu, disse-me duas coisas : para eu passar a trabalhar no atelier dele e para aparecer nas noites das 4ªs feiras no Centro Nacional de Cultura. Isso permitiu uma convivência muito maior e, sendo eu republicano indefectível ( o meu avô paterno terá sido um dos fundadores, na Figueira da Foz, do Partido de António José de Almeida) gostei de conviver com personalidades tão diversas e fantásticas como Sofia de Melo Breyner, Francisco Sousa Tavares, Barrilaro Ruas, Miller Guerra e imensos outros nomes sonantes. Eram noites de conversa sobre política e cultura, e sentados em pequenos bancos ou até no chão, uma dúzia de ouvintes entre eles regularmente uns sujeitos de gabardina, vizinhos do lado - pois era mesmo pegado à PIDE.
Depois várias tardes ia a casa do Gonçalo ajudar ( mais ver que ajudar...) a pintar os soldadinhos de chumbo de que ele tinha uma grande colecção e sempre a ser aumentada, trabalho nunca concluído até hoje...
Tenho cenas incríveis, quase anedóticas, passadas na altura das eleições e em regra com o João Camossa Saldanha, mas ficam para oura ocasião.
Em Março de 1974 deu-se o "golpe das Caldas" e, vivendo eu na Madeira, uns dias depois vim a Lisboa em serviço, mas encontrei-me com o Ernesto Melo Antunes ( que estava "deportado" nos Açores) no Montecarlo, junto ao Monumental, como acontecera outras vezes antes. Éramos amigos desde a nossa convivência na Bateria de Belém, em Ponta Delgada, nos anos de 59 e 60.
E disse-lhe por piada que a tropa falhara mais uma intentona, não havia uma que desse certo, ao que ele acrescentou " Vais ver que vai sair uma bem feita...", não me disse quando mas foi daí a menos de um mês, em 25 de Abril...
Já agora, essa noite de 24 para 25 de Abril de 74, estava eu bem longe do que acontecia em Lisboa, passei-a até perto das 2h da madrugada, no Hotel Sheraton com o Prof.Werkmeister, com quem iria trabalhar daí a um mês, e na eleição da Miss Madeira que, como era sobrinha dum grande amigo meu ( já falecido) estava na nossa mesa. O Prof. Werkmeister despediu-se pelas 2 h pois apanharia avião a meio da manhã. No dia 25 telefona-me ele ao fim da manhã a dizer que não tinha voado, estava retido no aeroporto, porque estava a acontecer uma revolução em Lisboa !! Foi assim que eu soube do 25 de Abril.
Falei ao telefone com o GRT que disse estar a haver uma grande confusão política e ele também estava envolvido. E dai a poucos dias foi ele que me telefonou a dizer para ir trabalhar com ele na Sub Secretaria de Estado do Ambiente, com grande euforia pelo que podia acontecer! Eu respondi-lhe que não podia ser pois daí a poucos dias ia para a Alemanha fazer um estágio de 7 meses com o Werkmeister, em Hildesheim. Acrescentou que esperava que eu voltasse e como eu não iria integrar o PPM em formação, pediu aos fundadores do PPD e recebi um cartão de Francisco Balsemão com umas folhas dactilografadas que eram as bases do que seria o novo Partido. Mas esse é outro assunto.
Quando regressei da Alemanha, em Novembro, estive a falar com o GRT e voltou a insistir para eu me mudar para Lisboa - não me estava nada a apetecer-
Há acasos e acasos...Em Março de 75 deu-se o golpe spinolista e por acaso estavam em viagem de trabalho na Madeira o Manuel Ferreira Lima que era Ministro e o GRTelles; numa reunião em que eu participava, na ex- Junta Geral, a meio da tarde chegou uma chamada de Vasco Gonçalves a perguntar se os dois queriam continuar num novo Governo e o Gonçalo ia ser promovido a Secretário de Estado. Aceitaram e o Gonçalo disse-me peremptoriamente que ou desta vez ia trabalhar com ele ou...nunca mais nos falávamos! Lá tive de vir para Lisboa.
Foi uma grande prova de amizade: com tantos colegas mais ou menos politizados e ansiosos muitos deles para entrarem na carreira política, foi a mim que o GRTelles escolheu e insistiu para trabalhar com ele. A nossa amizade cimentou-se de forma indiscutível e muitos fins de tarde, quando saíamos do Terreiro do Paço, ainda eu voltei a casa dele para "ajudar" a pintar os soldadinhos de chumbo!...
Foram uns meses empolgantes sob todos os aspectos, nesse Verão quente de 75 e até ao célebre 25 de Novembro.
Saíam ideias, rascunhos de legislação, textos para a imprensa e o nosso Gabinete era constituído por mim, Chefe de Gabinete, pelo Assessor permanente Luis Coimbra e a Maria Elvira, secretária; o Alexandre Bettencourt era Assessor não permanente e o assessor jurídico era o João Camossa . O nosso vizinho era o Garcia dos Santos, então Major, Secretário de Estado das Obras Publicas, com quem nos dávamos muito bem - e não havia a parafrenália de assessores e secretárias dos dias de hoje.
Com bastante regularidade tínhamos o Terreiro do Paço invadido por pessoal a protestar, nomeadamente com o apoio do "Fitipaldi dos chaimites", o Major Dinis de Almeida . E as manifs que desciam a Baixa e onde nos passeios encontrávamos muitas vezes a esposa do Gonçalo com uma amiga ou com a irmã; e o "Documento dos 9", a ocupação do jornal Republica, a nossa ida para a Calçada da Ajuda ver o assalto das tropas de Jaime Neves ao quartel da Polícia Militar... Entretanto nas nossas instalações improvisadas na Rua Barata Salgueiro, permitiam-nos trabalhar e pensar no futuro da política ambiental; mesmo assim não escapámos, próximo do 25 de Novembro, a uma "sugestão" de saneamento, com uma "lista negra" que surgiu com os nomes todos do Gabinete a serem perspectivados para serem saneados se a grande revolução popular fosse por diante... Faz rir hoje, mas denota como o espírito humano é capaz de bizarrias incríveis, por medo ou mero oportunismo; já depois do 25 Abril houve técnicos do mais acirrado conservadorismo que tinham sobre as suas secretárias copos com o emblema do PCP. Eu vi, ninguém me disse.
As viagens empolgantes que o Primeiro Ministro do VIª Governo, Almirante Pinheiro de Azevedo nos empurrava a fazer, a Sines, ao Porto, ao Algarve deram episódios com grande piada também,
Trabalhámos muito e desde Junho, sobretudo aos sábados de manhã em que não havia serviço, ficávamos os dois a rever as propostas do Curso de Arquitectura Paisagista a criar em Évora; depois durante o Vº Governo em que a S. Estado do Ambiente esteve "desocupada" - o Engº Correia da Cunha tentou ocupar o lugar mas limitou-se a continuar Presidente da Comissão Nacional de Ambiente (CNA) ( o único equiparado a director geral que não foi saneado depois do 25 de Abril porque o GRTelles não assumiu esse encargo) e a cobrir os assuntos correntes, trabalhámos no atelier na proposta de mais um curso para a Universidade de Évora, o de Engenharia Biofísica e que permitiria que a Arquitectura Paisagista tivesse um Departamento próprio.
Eu tinha feito, durante a estadia na Alemanha, e por conselho do Prof. Caldeira Cabral (o que também dava aqui para umas notas...) uma visita ao Parque Natural de Luneburger Heide, uma novidade em termos de Conservação da Natureza, que conciliava as actividades tradicionais do mundo rural com a preservação da Natureza e das paisagens, e sabia que em França também já existiam algumas dessas Áreas Protegidas. O Gonçalo Ribeiro Telles ficou empolgado com esse assunto e na preparação do futuro da Secretaria de Estado propusemos uma nova lei orgânica que incluía, além da CNA, um Serviço de Estudos de Ambiente que seria a base para posterior desenvolvimento de outros serviços especializados, e o Serviço Nacional de Parques, Reservas e Património Paisagístico (SNPRPP). Nessa altura - e ainda hoje... - muita gente com responsabilidades na Cultura não ligava nada ao património rural e ao paisagístico; só eram considerados monumentos dignos de louvor as grandes construções, os edifícios históricos, etc.
Ora a nossa convicção como arquitectos paisagistas é que a paisagem é o maior repositório do património das gerações que nos antecederam, as construções e estruturas da paisagem são verdadeiros monumentos que nos contam a evolução da Humanidade, aqui ou em qualquer parte do Mundo - enquanto que os relatos históricos são passíveis de serem escritos "à maneira"; daí essa convicção que levou a UICN e a UNESCO a considerarem a categoria de Parque Natural para além da de Parque Nacional. E o SNPRPP foi um dos primeiros na Administração Pública a ter autonomia administrativa e financeira, proposta que levou o GRT a grandes reuniões com as Finanças que não aceitavam de ânimo leve essa figura, preferiam as direcções gerais onde o controle era maior.
Deixada a Secretaria de Estado, com 3 ou 4 diplomas publicados que indiciavam já o que deveria vir a ser a legislação básica da Política de Ambiente, Gonçalo R Telles foi para a Universidade de Évora, dirigir os primeiros cursos que entretanto começaram a funcionar.
Eu fiquei a Presidir ao SNPRPP até final de 1980, era já o único director geral ou equiparado que tinha escapado ao saneamento feito por Sá Carneiro quando em 1979 formou a AD e limpou todos os dirigentes que não fossem do PPD... É bom ter estas memórias.
Quando fui saneado por ser "eanista", fiquei na recém criada Direcção Geral de Ordenamento, com o meu colega e também grande amigo António Viana Barreto, a quem ajudei a montar os serviços e comecei a ir dar aulas na UÉvora, pois o Gonçalo a isso me impeliu. Já antes. como ele tivesse sido convidado para dar aulas no Instituto de Novas Profissões, ali na Duque de Loulé, porque não tinha tempo, lá me indicou a mim e no Curso Superior de Turismo, criei duas cadeiras de Ordenamento do Espaço Turístico, em acordo com o que defendia o GRT.
A seguir ao desastre de Camarate, Ribeiro Telles foi para o Governo presidido por Balsemão, e sendo uma situação deveras politizada e muito diferente da de 1974, eu não quis ser Chefe de Gabinete, pois entendia que esse lugar devia ser ocupado por quem tivesse alguma sintonia política com a situação.
No entanto reuníamos frequentemente, eu fui ao Ministério várias vezes e GRT deslocava-se á DGO onde se reunia com o Viana Barreto e comigo. Foi depois de uma reunião dessas, a que assistiu também o Engº Correia da Cunha, e já cá fora na rua, em que insistiam para que eu voltasse a presidir ao SNPRPP, o que eu recusava, e já em desespero de causa depois de terem sido "vetados" vários nomes, eu me lembrei do Almeida Fernandes que era versado em educação ambiental e com um argumento final que, sendo ele próximo dos socialistas, a AD até dava uma de democracia ao nomeá-lo para Presidente do Serviço...
Acompanhei GRT na UÉvora até 1967, com imensa satisfação, e é com muito orgulho que anos depois fui encontrando ilustres colegas que tinham sido meus alunos, muitos hoje doutorados.
Acompanhei-o na criação do MPT, que nasceu uma noite em casa do Luís Coimbra, ali em Campo de Ourique, numa reunião em que estavam além do Luís e do Gonçalo, eu, o Miguel Esteves Cardoso e o António Eloy.
Nunca aceitei qualquer lugar nos corpos dirigentes e quando o Partido foi assaltado por oportunistas, o GRT, eu e muitos outros fundadores abandonámos o MPT.
Continuei visita da casa, considerado quase da família, ano após ano; abalancei-me a escrever um Esboço Biográfico e depois a sua Biografia.
Almoçávamos algumas vezes, tínhamos grandes bate-papos na Deguimbra, a pastelaria perto da sua casa na Rua de S. José; convidei-o para algumas reuniões e encontros, nomeadamente na Fundação de Querença.
Até que sofreu a queda em casa, que o deixou diminuído.