segunda-feira, 23 de novembro de 2020

 Ainda Gonçalo Ribeiro Telles


Quando vinha de Lisboa para o Algarve, naquele fim de  tarde depois da saída do funeral dos Jerónimos, foi quando caí em mim, como se levasse uma grande pancada : nunca mais voltaria  a subir as escadas da Rua de S.José ! Durante os últimos 4 ou 5 anos, e  de forma quase semanal nestes últimos meses em que o Gonçalo piorou e estava isolado de visitas ( permitiam a mim, fora da família,  que o visitasse), estive com ele, assistindo a uma lenta e progressiva agonia, com cegueira, com quase impossibilidade de falar - mas consciente, mesmo debaixo da sonolência que os  sedativos lhe provocavam, ele reconhecia-me e prestava alguma atenção ao que eu dizia só para o manter ligado.  Acabou o meu empenho em continuar a escrever sobre este velho e grande Amigo.

No entanto, por solicitação insistente, acabei por escrever o último artigo em memória do Gonçalo, que veio publicado no Jornal de Letras. Mas acharam por bem ( acharam eles, sem me dizer) que deviam cortar algumas frases, o que acho intolerável.  Por isso aqui vai na íntegra.

Gonçalo Ribeiro Telles, o Homem, o Mestre

É fácil e é difícil escrever sobre Gonçalo Ribeiro Telles.

Fácil porque todos o conhecem e sabem muito daquilo que ele construiu ao longo da vida; difícil para não cair nos lugares comuns estereotipados que são sempre utilizados nestas laudas.

Antes de abordar o Mestre vou tentar abordar o Homem com quem convivi com intimidade quase 60 anos, mas tenho de falar de mim porque, depois de tantas personalidades terem escrito sobre ele,  essa é a única razão para eu poder escrever  estas linhas sentidas. Foi meu Professor coadjuvando o Professor Caldeira Cabral e, para meu espanto, habituado a ver o Estado Novo perseguir republicanos e comunistas, ele - católico e monárquico - foi expulso do ensino! Foi também expulso da Câmara Municipal de Lisboa por uma exemplar questão de ética profissional ligada ao seu projecto para a Avenida da Liberdade.

Numa das últimas aulas que deu convidou-me para ir trabalhar no seu atelier e também para eu aparecer nas noites de quarta feira no Centro nacional de Cultura, onde se discutis Cultura e Liberdade. Para as gerações de hoje isto talvez pouco diga, mas era precisa coragem para aqueles homens e mulheres de grande valor se posicionarem, daquela forma, e naquele lugar, ali mesmo pegado com o quartel da PIDE.

Gonçalo Ribeiro Telles afirmou-se sempre como "monárquico popular" mas alinhou durante décadas com a oposição republicana ao regime. As suas convicções monárquicas, que eu não partilhava,  mas inspiradas em valores da Cultura e da Tradição, contribuíram decisivamente para alargar os conceitos de democracia e de convivência democrática nos ideais da Liberdade.

Basta dizer que em 1973 foi convidado a participar, mas impedido de o fazer, no 3º Congresso da Oposição em Aveiro, onde apenas  conseguiu chegar o dr. Henrique Barrilaro Ruas que leu a sua mensagem, mas a presença dos monárquicos foi possível depois do Congresso ter deixado cair a designação de Republicano para passar a ser da "Oposição Democrática" - o que só por si também diz muito do prestígio e da consideração que Ribeiro Telles já então granjeava.

Recordo-me de, em 1959, ele ter sido incomodado pela PIDE, instaurando-lhe um processo e tribunal, por ser signatário duma Carta a Salazar ( de que tenho ainda uma cópia) que partiu de um grupo de católicos progressistas encabeçada pela grande figura do Padre Abel Varzim, que incluía outros sacerdotes e personalidades da craveira de Francisco Sousa tavares, do hoje tão esquecido José Escada, João Bénard da Costa, Sofia de Mello Breyner, Nuno Teotónio Pereira e outros.E constava do documento da acusação que ele "tinha custeado a impressão da carta e sua distribuição"...

Como dirigente dos monárquicos independentes e populares  participou nas diversas eleições que se organizaram, em 1958 integrou a candidatura de Humberto Delgado e em 1969, por convite de Mário Soares, participou nas listas da CEUD através da Convergência Monárquica que chegou até 1974 - tudo o que significasse democracia e liberdade dizia-lhe respeito.

Por mim, que deixei de o ter como Professor no ISA, continuei a tê-lo no seu atelier e tenho recordações incríveis desses anos. Eu, republicano, passei a ser um dos seus mais dilectos discípulos e as nossas conversas sobre politica e sobre tudo o que nos rodeia, ao longo de todos estes anos, apenas cimentaram  uma enorme amizade e uma grande, muito grande, compreensão da minha pare pelo se génio. Porque é de génio que se trata.

A sua invulgar capacidade intelectual, revelou-o como criador de de paisagens e como inspirador de ideais democráticos, pois para Gonçalo Ribeiro Telles tudo se conjugava numa concepção global da paisagem, dos homens, do património natural explorado para dele se edificar o património construído- tudo se conjugava numa grande IDEIA comum. 

Todos têm falado dele em 1967, quando ocorreram as trágicas cheias da região de Lisboa que provocaram centenas de mortos e cujo número o regime tentou encobrir.  Nessa data, à personalidade de homem politico Ribeiro Telles veio tornar pública  a sua qualidade de grande técnico, a afirmação  de Mestre, surgindo inesperadamente na televisão a explicar as razões que tinham dado tal dimensão às chuvadas anormais que haviam caído na região. Denunciou a ocupação dos leitos de cheia e das cabeceiras das bacias hidrográficas pelas populações desfavorecidas e apontou o dedo à falta  de políticas de habitação, de apoio social e de ordenamento do território; falou de conceitos e de uma terminologia técnica que hoje nos são familiares mas que, na altura, surgiam como novidade para muitos  técnicos e sem dúvida para a opinião pública.

Com os 25 de Abril de 74 Gonçalo Ribeiro Telles, já então Presidente do PPM - Partido Popular Monárquico -  foi chamado para Sub-Secretário de Estado do Ambiente, passando depois a Secretário de Estado da mesma pasta. E teve o "desplante" de me convidar para seu chefe de gabinete, eu que sempre fui republicano e avesso ao activismo politico - mas a ele não fui capaz de recusar.

Gonçalo Ribeiro Telles depois de ter saído do VIº Governo Provisório, voltou ao ensino universitário em 1976, para a recém criada Universidade de Évora, construindo o Departamento de Planeamento Biofísico  que englobava  as licenciaturas em Arquitectura Paisagista e Engenharia Biofísica e que ele dirigiu até á sua jubilação.

Mas não abandonou a intervenção politica, participando como deputado na Assembleia da República pelo PPM integrado na AD e masi tarde como deputado independente elo PS.

Por trás do Homem, democrata, íntegro, espírito impregnado dos melhores valores humanos e colectivos, que lutou sempre pela liberdade e pela coesão social, para lá de ideologias catalogadas, estava pois o técnico, o visionário, o Mestre.

Foi entre 1979e 1983 que Ribeiro Telles teve a mais importante contribuição da sua vida para a consolidação da Política de Ambiente e de Ordenamento do Território, dando dela a verdadeira imagem pública  que já era  respeitada por todos quantos com ele privavam. Foi Ministro de Estado e da Qualidade de Vida e ainda hoje, apesar dos atropelos, das (in)correcções, das incompetências, das submissões a valores mercantilistas tornados mais importantes que a verdade das Ciências da Terra, a Política de Ambiente em Portugal assenta na legislação que saiu da sua vontade política : e não vou repetir o que já se escreveu sobre a sua acção nesses domínios.

Chamado por vezes  de utópico e idealista, nunca se afastou da realidade que é representada pela  Vida, quer no espaço rural quer no espaço urbano. Terçou armas para que paisagem urbana e paisagem rural fossem entendidas apenas como duas faces da Paisagem Global. em que a Natureza esteja presente e em que o homem tire dela proveito sem a prejudicar - hoje todos lhe dão razão por ter insistido quase obcessivamente na importância das hortas urbanas e dos corredores verde. Pôde ainda assistir à concretização duma sua "utopia" lisboeta, o corredor verde entre o Parque Eduardo VII e o Parque de Monsanto..

Utopia com os pés na terra- define bem a sua postura.

Batalhou sempre a favor do conhecimento e do respeito pelo genius locci de cada lugar - e lançou os primeiros impulsos mediáticos a favor do equilíbrio das paisagens, da defesa da Biodiversidade, do respeito pelas leis da Natureza semn fundamentalismos porque essa é também a ideia magna da arquitectura paisagista - a arte e a ciência de ordenar o espaço em relação ao Homem, com respeito pelas leis naturais da Biosfera. Foi assim o Mestre de muitas gerações.

Acompanhei Gonçalo Ribeiro Telles nos últimos anos em que aguentou um sofrimento físico e psíquico impressionante, como impressionante foi sempre a sua resiliência até ao último sopro - com 98 anos feitos.

Não basta dizer que Portugal tem uma grande dúvida para com ele - é preciso e urgente que alguém tenha a coragem de implementar as suas ideias sobre o território e a paisagem, única homenagem digna do Mestre que ele foi.

















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