A democracia é frágil
Não podemos pensar só na peste que nos caiu em cima neste ano da (des)graça de 2020 que findou, já bastam as parangonas dos jornais e as exclamações bombásticas de alguns pivots das televisões, que causam uma atmosfera de susto e de quase paranóia, tanto quanto causam cada vez mais o encolher de ombros de muita gente farta deste clima e destas regras que, sendo indispensáveis, se tornam opressivas e perturbam a sensibilidade em largos sectores da sociedade. Pensemos em outros assuntos...
A democracia é frágil e sofre as consequências das suas fragilidades que são também a sua razão de ser. Por ser permissiva e aberta aos confrontos de ideias, mesmo daquelas que a querem destruir, torna-se em muitos casos vítima de si própria.
Há cada vez mais países no mundo que se revelam incapazes de sustentar a democracia que foi criada e desenvolvida sobretudo na Europa e estendida a vários continentes. Uma sociedade para receber e aceitar viver em democracia tem que ser exigente naquilo que se ouve dizer à boca cheia, a ética, mas que em muitos casos não passa de retórica. Há países onde se tentou implantar a democracia mas onde a sociedade não estava maioritariamente consciencializada para isso; veja-se "Primavera árabe" sonhada por algumas elites europeizadas mas nitidamente minoritárias, naquilo em que resultaram. Tirando a Tunísia, de mais forte influência francesa e pouca população, e onde lá se vão aguentando as instituições democráticas embora com alguns solavancos, em todos os outros países as ditaduras voltaram a impor-se; no Egipto a Irmandade Muçulmana ganhou as eleições com larga vantagem para logo de seguida começar a impor a sharia e os demais preceitos islâmicos - resultado : o regresso dum ditador, única forma de manter o país dos faraós em ritmo de cruzeiro.
Na Europa é flagrante a falência da democracia na Rússia e em muitos dos países que durante décadas estiveram sob a alçada da União Soviética. A Revolução Francesa que, para lá dos seus excessos foi fundadora do Estado Moderno, nunca chegou às estepes russas; Catarina "a Grande" ainda tentou, convidando para sua Corte os filósofos franceses mais proeminentes, mas a nobreza feudal não deixou e os camponeses continuaram como servos da gleba até á revolução bolchevique.
E os países da Europa oriental ensaiaram mas não conseguem aguentar a democracia, já não falando naqueles que ainda ficam a satelizar a Rússia, como a Bielorussia e a Ucrânia, mas outros que tentaram modelos "ocidentais", veja-se a Hungria, a Polónia, a Eslovénia... A submissão à ditadura do proletariado durante décadas, precisamente quando a Europa ocidental ia melhorando e evoluindo nas suas práticas de liberdade e abertura democrática, moldou as mentalidades e os resultados estão à vista.
E até os EUA, padrão da democracia ocidental, que se alcandoraram ao primeiro lugar das potências mundiais cultivando a democracia, até aí passaram-se quatro anos de tentativas absurdas de subverter o regime por um Presidente paranóico, exemplo e estímulo para outros fantoches em todo o mundo. É o que está a vir à tona de água depois de décadas de uma globalização neoliberal que tem tentado eliminar ideologias e deixar que os mercados funcionem em roda livre.
Depois da queda do bloco soviético recorda-se que surgiu um guru liberalista, Fukuyama, a proclamar o fim da História - já não haveria mais direita nem esquerda, apenas a liberdade dos liberalistas e os seus mercados livres também, O mesmo arauto dizia em 2019, numa entrevista, que nunca esperou que o sistema que ele defendia gerasse tanta desordem e permitisse a eleição dum Trump; e atribuía uma das razões para isso acontecer à incapacidade da esquerda democrática ocidental de reagir e se ter deixado influenciar pela ideologia do mercado.
Vamos continuar a pensar nestas coisas...
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