sexta-feira, 17 de setembro de 2021

 Pequenas histórias

A minha vida já vai longa, o que dá como resultado que já tenha algumas histórias para contar. Estas notas que incluo no blogue são essencialmente para mim, embora saiba que tenho alguns amigos que as lêem. Hei-de ir contando algumas dessas histórias.

Há dias numa Clínica em Coimbra um médico falou a outro médico meu amigo, que o seu pai já tinha 103 anos, estava excelente e ainda conduzia o carro; um colega em em Lisboa mostrou a fotografia da mãe que, com 106 anos, está com muita saúde - cá estão dois objectivos que bem posso tentar alcançar...

Começo por uma história engraçada :  há dias telefonou-me um amigo, biólogo, António Araújo, conhecido como Kaiser, e que aos 60 e tal anos vem fazer o doutoramento na Univ. do Algarve. É talvez a pessoa que eu mais influenciei na vida, felizmente com o maior sucesso, porque se tivesse corrido mal pesar-me-ia na consciência.   Aí nos anos 90 do século passado fui encarregado de criar o Parque Natural da Cufada, na Guiné, e tive de constituir uma equipa; da botânica encarregava-me eu, com recurso a alguns especialistas, da fauna em geral tive um bom zoólogo que tinha vindo de Angola, o Dr. Crawford Cabral, e precisava de um especialista em avifauna. Ora havia no Serviço o CEMPA ( que já se chamara CEMA, outra história...) onde trabalhavam tres rapazes, o Rui Rufino, o Francisco Ribeiro Telles e o Kaiser e este pareceu-me pelo seu feitio e vivacidade o mais indicado - convidei-o e ele aceitou. Nunca mais saiu de África, passou para a UICN e fez toda a sua brilhante carreira  naquela região. 

Em dada altura vivia num país dos mais improváveis para se viver, a Mauritânia, e eu acedi à sugestão para o visitar. Com a minha mulher estávamos no Senegal e fizemos a viagem de taxi de Dakar até ao rio Senegal que faz a fronteira com a Mauritânia, uma viagem muito boa passando pelo Lac Rose, sempre pela savana e deserto  e parando lá ao norte na cidade de San Louis, antiga capital da África Ocidental francesa, hospedados num "résort" de pequenas cubatas que em época áurea deve ter sido agradável. Fica na foz do rio, tem a praça central que parece um quarteirão da baixa parisiense com prédios do Império, mas o resto é um amontoado de casas e maus cheiros difíceis de suportar. Como é um porto de pesca e amanham ali o peixe, o fedor a peixe podre e as moscas são um pequeno inferno.

No outro dia atravessámos o rio num ferry-boat e toda a gente conhecia o António, que nos esperava do outro lado e nos conduziu até Nouakchott, a capital da Mauritânia.

Vem a seguir um pequena história. Metemo-nos num jeep, o António e a companheira à frente, eu e a Conceição atrás,  em direcção ao norte e sempre próximo do mar; no deserto não havia  estradas, apenas trilhos visíveis dos veículos que por ali cruzavam e foi o meu primeiro contacto com o Sahara que ficou para sempre um dos meus ambientes mais admirados  do Mundo! Parámos num local da costa em que estavam a descarregar peixe e levámos um grande carapau porque dizia o António que lá ao norte, quando acampássemos, iriamos usar como isco para a pesca. O carapau foi colocado ao lado das malas no tejadilho do jeep.

Nunca mais nos lembrámos do peixe; isto foi em Junho de 2004, enquanto decorria o campeonato de futebol. Acampámos na praia, sob um grande promontório,  e lá em cima  funcionava uma estação de comunicações e radar; nesse fim de tarde fomos lá  falar com o pessoal de serviço e o oficial garantiu-nos que nessa noite, em que Portugal jogava com a Inglaterra, se nós ganhássemos ele iria à nossa tenda dar a notícia. Não apareceu, na manhã seguinte fomos despedir-nos e o homem então disse que  Portugal tinha ganho mas ele tinha tido tanto serviço que não deu tempo a ir avisar-nos!...

Seguimos viagem para norte, quase até ao Cabo Branco, passando ao largo de uma laguna que, coisa interessante, era o limite sul  das pradarias de Zostera. cujo limite norte é na Ria Formosa.

Por fim voltámos para baixo em direcção ao sul, pelos trilhos onde passáramos uns dias antes e  demos boleia a um mulah, uma espécie de padre, que ia para a capital; eu tive que passar para o meio no assento porque o padre, sempre a rezar o seu rosário,  não se sentava ao lado de uma mulher e infiel... Em dada altura o António disse que iriamos ver um concheiro pré-histórico e virou o carro para o interior- o padre em mau francês,  fartou-se de berrar que íamos para o sul não para ali e só quando parámos e vimos a enorme colina de artefactos pré-históricos é que percebeu e sorriu.

Retomada a direcção ao sul, em dada altura o António travou bruscamente o carro e apontou, entre gargalhadas, o carapau, de que nunca mais nos lembrámos, que caíra do tejadilho e ali estava há vários dias seco "que nem um carapau". Eu tentei dizer ao mulah que o carapau caíra de cima mas ele não percebia e gritava, "non,pas du ciel,  il vient de la mer". Foi uma risada que ainda hoje ressoa!!

O homem estava confuso, e mal parámos num acampamento para descansar ele - que ia para a capital como nós - despediu-se logo ali e já não quis seguir connosco.

Esta viagem pelo Sahara ocidental  vendo as imensas dunas a chegarem exactamente até à  praia, os camelos a pastar  a magra ervagem, o imenso horizonte ondulado, marcou-me para sempre.








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