Pensando nas coisas da vida...
Vivemos tempos conturbados e, porque estamos neles inseridos, temos tendência certamente a pensar que são tempos excepcionais, mas não são. Em todas as gerações se passam factos perturbadores, ocorrem situações dramáticas, e em cada geração se descreve o que se passa como sendo coisas terríveis, coisas excepcionais. É natural, os seres humanos sentem aquilo que vivem e enfrentam sem alternativa, pois aquilo que se conta do passado, mesmo recente, diz respeito a outros que não a quem está numa dada altura a pensar e a sofrer - ou a beneficiar - de agressões psicológicas ou de invenções e grandes descobertas. E em todas as gerações se fica espantado com aquilo que se viveu e que se julga acima do que acontecia antes.
Recordo o que o meu pai, que nasceu no último ano do século XIX, me contava - e também aqui estou a ser igual aos velhotes da minha idade que é o recordar as coisas mais antigas dos pais e avós. Dizia ele que conhecera as maiores transformações da sociedade que se podiam imaginar, e tinha razão: nasceu na monarquia, viu surgir a República, o meu avô, seu pai, aderira desde muito novo ao ideal republicano e era uma bom operário mecânico dos caminhos de ferro, onde chegou a chefe torneiro; fora o primeiro aluno a matricular-se na Escola Industrial aberta pela Republica na Figueira da Foz e esteve na fundação da delegação local do Partido Evolucionista do António José de Almeida, por quem o meu pai conservou ao longo da vida um grande respeito e admiração "porque era entre os políticos republicanos o mais sério e dedicado ao povo, sem pensar em benesses". Depois, dizia ele, tinha visto aparecer a caneta de tinta permanente e não ter de continuar a escrever com aparo e tinteiro, viu surgir o cinema insipiente, mudo e a preto e branco e depois chegar ao filme sonoro e a cores; viu aparecer a televisão; viu a 1ª guerra mundial, morreram dois irmãos, o António em exercícios em Tancos e o José na batalha em La Lys . Sofreu com a chegada da ditadura de Salazar, mantendo-se secretamente na oposição e, dizia, votava sempre com um traço a cortar a lista do regime.
Assistiu à 2ª guerra Mundial, que eu mesmo recordo - era pequeno mas lembro os exercícios à noite e em especial o dia do armistício, a meio da tarde: estávamos todos à mesa na sala de jantar até que a voz do Fernando Pessa proclamou que a guerra acabara - e abriram uma garrafa de champagne. Ele viu os foguetões no espaço, os avanços duma medicina que já nada tinha a ver com as mezinhas da sua juventude, etc. etc. Quer dizer para ele tinha passado por tempos excepcionais e isto foi o que aconteceu ao longo da vida das sociedades humanas, sempre!
Penso muitas vezes no período dramático que foi, por exemplo, os últimos anos do Império Romano do Oriente e em especial um episódio relevante; quando o Imperador Constantino, por influência da mãe que veio a ser a Stª Helena. proclamou o fim do paganismo e a adopção do cristianismo como a única religião permitida em todo o Império. Deve ter sido um trauma de proporções sobre-humanas! Destruição de templos e perseguição aos que teimavam em seguir a religião dos seus antepassados, com aquela multidão de deuses que cobriam todas as necessidades do ser humano e todas as coisas que sucediam na Terra e no Cosmos - era um mundo de farta imaginação e onde cada um podia escolher para si os deuses de que mais gostava.
Com o Cristianismo veio um só deus ditador, misericordioso mas capaz de permitir as maiores calamidades sem intervir, e com ele uma miríade de santos que fazem as vezes dos pequenos deuses gregos e romanos - e toda a gente foi obrigada a aceitar e calar. Muito mais tarde, Santo Agostinho, com a sua vasta cultura e ao que tudo leva a crer uma inteligência acima do vulgar, veio dizer ( in De Vero Religione) que todas as religiões foram sempre verdadeiras até que surgiu religião cristã e passou então a ser a religião verdadeira - coisa que a Igreja não deve gostar nada e faz por esquecer.
Mas voltando aos últimos séculos do Império Romano, a instituição do Cristianismo como única religião permitida deve ter trazido traumas indescritíveis às sociedades onde chegava a força do Império; até que foi eleito como Imperador Juliano no ano de 361 e que morreu com 32 anos de idade, apenas dois anos depois numa batalha contra os persas. Apelidado de Apostata, Juliano ficou célebre por ter proclamado o fim da exclusividade do cristianismo e defendeu o paganismo . A sua carta " Defesa do Paganismo - Contra os Galileus" é um documento notável, onde mete a ridículo os mitos cristãos comparando-os com outros mitos também ridículos do paganismo, que ele não esconde. Só que proclama que todos têm o mesmo direito de acreditar naquilo que quiserem. Isto dito em pleno século IV da nossa era é simplesmente fantástico e talvez a primeira proclamação da liberdade de expressão e de crença!
Só que com a sua morte prematura, o seu sucessor repôs o cristianismo, daí em diante sem mais equívocos. Mas pensemos que, se Juliano tem tido uma vida longa e normal como seria de esperar com 32 anos, a História teria sido diferente daí em diante e o cristianismo não passaria de mais uma seita como tantas que pululavam nesses tempos no Próximo Oriente e na Índia.
Imagine-se o que terão sido as convulsões dos seres humanos destas sociedades apanhadas nas ressacas destas alterações!
Vou continuar a pensar nestas coisas num próximo escrito...
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