Sobre a liberdade e a democracia, liberal, liberalismo, liberalistas e libertinos (continuação)
Vou fazer um resumo das reflexões sobre o assunto, para não tonar esta notas demasiado extensas
O que deve caracterizar a democracia, tal como a sua melhor expressão, a república. é a Ética do bem comum e a defesa intransigente da liberdade. Sou daqueles euro-apologéticos que pensam que à Europa cabe o papel histórico de fundar e liderar o processo de recuperação e dignificação das instituições democráticas -não por qualquer pretensão de superioridade mas apenas porque a História nos revela que foi na verdade da Europa - e do Sul- que sempre partiram os vectores principais das etapas que foram cimentando o Estado Moderno.
Há na Europa monarquias democráticas em sociedades que conseguiram dar ao poder real uma mera representatividade institucional, mas também não custa dizer que mesmo assim ficando de fora a eleição do Chefe de Estado, haverá sempre um déficit na representatividade popular. Quantas vezes, ao longo de uma vida, discuti amigavelmente este assunto com o Gonçalo Ribeiro Telles...
Estes último século XX e o actual XXI são tempos em que, pelas circunstâncias dos avanços nas diferentes formas de conhecimento e pela erosão provocada nos sistemas sociais e económicos, as mudanças se fizeram sentir a intervalos mais curtos.
Uma coisa parece certa, foram as tentativas fomentadas pelo neoliberalismo de desqualificar as ideologias após o fim da 1ª e 2ª Grandes Guerras e depois do fim da "guerra fria" que voltaram as proclamações da "morte da História".
As ditaduras de direita e de esquerda que dominaram largos períodos do século XX deixaram marcas tanto mais enraizadas quanto menos firmes eram as raízes democráticas das populações e das suas elites intelectuais.
A Rússia, com o seu poderio secular imperialista conduzido por líderes demagógicos nos discursos e nas acções, adoptou um regime comunista que se afirmou pela força das armas, onde a violência exercida sobre os povos das suas regiões causou milhões de vítimas; e ainda antes dos nazis terem criado os seus repelentes campos de trabalho, grotescamente sob o lema " o trabalho liberta", já os soviéticos tinham instituído os seus "goulag" na Sibéria, onde apodreceram milhões de russos e de populares dos países por eles dominados.
Mesmo tendo Catarina II chamado para a sua corte filósofos iluministas como Voltaire e Rousseau ( cujas bibliotecas estão no Palácio de Verão...)para tentar democratizar o imenso país euro-asiático, a oposição dos senhores feudais que dominavam os milhões de servos da gleba não consentiu em mudanças e estas acabaram por chegar violentamente com os soviéticos. Quem visitar São Petersburgo e olhar aquela estrutura de palácios que forma a cidade histórica, percebe porque é que foi ali que se iniciou a revolução bolchevique.
A seguir à guerra que terminou em 1917, os malefícios dos regimes liberalistas de mercado desregulado juntamente com as dificuldades de recuperação dos países destruídos pela guerra, levaram progressivamente a crises terríveis e ao surgimento de ideologias de extrema direita, com as suas promessas salvíficas e a fé nos grandes líderes. Assim cresceram os fascistas italianos, os nazis alemães, os franquistas espanhóis e os salazaristas portugueses - aqui agora de novo com saudosistas a enaltecerem uns encapotadamente, descaradamente outros, o papel de grande educador dos povos que teve Salazar, exemplo a seguir por quantos querem uma democracia "melhor" que aquela que temos... Nós precisamos de melhorar dia a dia a nossa democracia, mas sem novo Salazar ou sem ter este como guru...
Já referi a grande crise de depressão dos EUA que abalou o mundo e que desacreditou as políticas que o liberalismo preconiza. Tudo isso culminou na 2ª Grande Guerra, e após o conflito surgiram as melhores décadas de paz, do Estado Social, da liberdade instituída em plena democracia que a Europa já conhecera, quando as governações eram alternadamente da democracia cristã e da social democracia - no fundo com origens diferentes mas com os mesmos propósitos de justiça social, de controle dos mercados e de garantia das liberdades fundamentais. Ficaram de fora desse período de progresso civilizacional o Portugal de Salazar com a sua criminosa guerra colonial e a Espanha de Franco com a sua nazificação bem documentada na Guernica.
Insiste-se, o período de maior estabilidade, bem estar e progresso do Ocidente, em especial da Europa, a seguir à Grande Guerra foi o da governação feita pela democracia cristã à direita e pela social democracia à esquerda; o liberalismo ficou na prateleira apenas com uns quantos pequenos partidos de pouca representatividade. Mas, mais tarde a queda do muro de Berlim, simbolicamente o fim do poder soviético, renovou um neoliberalismo que voltou a ganhar peso.
Durante a maior parte do século XX a grande inspiração para se opor ao liberalismo económico-social veio das ideias do inglês John Keynes, que apresentou o melhor sistema para aguentar por um lado o capitalismo sem entrar nos desvarios do mercado livre desregulado, por outro lado da esquerda marxista. Daí a oposição aguerrida mantida pelos gurus liberalistas e pelos pensadores marxistas, pois o keynesianismo distanciava-se de ambos.
Realçaram-se porém no campo neoliberal os papeis de Friedman e de Hayeck, este indo mais longe ainda que o primeiro e tornando-se o consultor e inspirador de Ronald Reagan e de Margaret Thatcher. Para Hayeck . Prémio Nobel em 1974, "a sobrevivência em economia é a dos mais fortes e mais aptos, de acordo com os êxitos e os falhanços nas suas iniciativas".
Vários economistas famosos vieram denunciar os desvarios que esta política neoliberal acarreta e a globalização neoliberal acabou por ser revelada, no seu pior cenário, nestes anos de pandemia e agora com a guerra russa, com a falta de autonomia das nações e a dependência dos grandes grupos industriais. O paradoxo fica aqui bem expresso: o medicamento mais usado para a pandemia e gripes normais, o paracetamol, tem todo o seu princípio activo fabricado unicamente na India, veja-se !!
Dean Rodrick, da Univ. Harvard, e Joseph Stiglitz. da Univ. Columbia e Prémio Nobel em 2001, foram dos mais destacados pensadores do antiliberalismo. Este último escreveu em 2019 que " o neoliberalismo prejudica a democracia há 40 anos."
Um outro guru do neoliberalismo foi - e é ...- Francis Fukuyama, também consultor de Thatcher, que com a arrogância habitual dos liberalistas, aquando da queda do bloco soviético, escreveu o livro "O Fim da História" no qual diz que acabaram as ideologias, o mundo vai voltar a ser apenas o do capitalismo liberal e de mercado livre, ou seja deu corpo em parangonas ao leit-motiv de todos os liberalistas libertinos de sempre, acabaram as ideologia, foi o fim da História.
Foi incensado com a publicação do livro mas depois bastante ridicularizado; mais tarde, em Abril de 2019 numa entrevista que deu ao El Pais acabou por reconhecer que falhara mas renovando a crença no futuro das suas ideias, e que nunca pensara que se desse a ascensão de partidos populistas nas democracias consolidadas; percebia que a Polónia e a Hungria tivessem caminhado no sentido anti liberal mas nunca imaginou que fosse possível nos EUA eleger alguém como Trump. E, desabafava, a principal causa do excesso do neoliberalismo e das fugas antiliberais não foi só a queda do comunismo, foi a perda de influencia dos partidos de esquerda democrática por toda a Europa. Mas Stiglitz comentou: "hoje... a ideia de Fukuyama parece peculiar e ingénua, mas reforçou a doutrina económica neoliberal que prevaleceu nos últimos 40 anos".
A realidade que o neoliberalismo trouxe às sociedades em que se instalou ( e contaminou de forma especial a União Europeia e as políticas que tem sido seguidas...até à pandemia e agora a guerra russa, veremos a seguir...) é que, quem trabalha para obter maior satisfação das suas necessidades, não percebe que muitas dessas necessidades são continuamente criadas pelo sistema consumista liberal ( que eu designo de liberalista ou libertino) em que está mergulhado e os trabalhadores - agora incluindo as classes médias que são motor do desenvolvimento - estão convencidos que pertencem e participam numa sociedade e numa civilização de homens livres- sem perceberem que estão totalmente presos da engrenagem e dependentes das regras que lhes são subtilmente insufladas. Este é o verdadeiro espírito do liberalismo, neo ou não, económico e financeiro que, como a hidra da mitologia quando lhe cortam uma cabeça leva algum tempo a reagir mas surge com várias novas cabeças.
Por isso eu penso, cá no nosso "burgo", em termos de "infecção" social, que mais perigoso que o Chega - epifenómeno alimentado pelo descontentamento popular e que acaba sempre por se desacreditar a si próprio- são os "liberais" que se apresentam como os grandes defensores das liberdades, os que são perfeccionistas na execução das tarefas. os que falam a linguagem moderna, no fundo os que atraem grande parte da juventude instruída despolitizada e motivada para melhorar a vida.
E este retorno à arrogância que é fundacional para os liberalistas, é de novo capitaneado pelo velho guru: reapareceu Fukuyama e , em Portugal, ou me engano muito ou com fortes influênciazinhas na comunicação social, numa espaventosa entrevista ao " Publico".
A fé é que nos salva e o mais relevante das suas declarações foi que " as pessoas acabarão por voltar ao liberalismo como a única alternativa", sempre a última e a única alternativa. É nesta fé que a hidra liberalista acalenta o seu regresso, se a Humanidade instruída e amante da verdadeira liberdade (liberdade que é individual mas também é colectiva, da solidariedade e não das esmolas) se deixar de novo enfeitiçar pelas falsas promessas que, ao longo de quase dois séculos, se traduziram sempre em sofrimento e atraso intelectual para os povos,
Fico por aqui ! Já deu para pensar em alguns dos assuntos que se discutem e para revisitar a História que, dizem, que não se repete - mas há histórias da História tão parecidas com algumas que já aconteceram antes....
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